quinta-feira, 22 de setembro de 2016

A morte de um exorcista: Pe. Gabriele Amorth

O recente falecimento do Pe. Gabriele Amorth apanhou-me de surpresa. Sim, o velho exorcista já contava com 91 anos e, nesta idade, a morte não é propriamente um acontecimento inesperado; a manchete, no entanto, mostrou-me o quão pouco eu acompanhava as notícias a respeito dele. Não sabia que estava doente, aliás nem me lembrava ao certo da idade dele. Na Sexta-Feira passada, no entanto, ele deixou o campo de batalha terreno para nos ajudar lá do Alto, onde agora pode mais junto a Deus.


Há o mau hábito no Catolicismo contemporâneo de ser muito condescendente para com as imperfeições alheias, principalmente no que diz respeito à tendência de conceder uma imediata ascensão aos Céus às almas daqueles que minimamente admiramos. Toda gente é santo súbito, toda a morte é entrada gloriosa no Paraíso. Esquecemo-nos do Purgatório — e isso pode até ser falta de caridade de nossa parte, na medida em que não nos sentimos obrigados de rezar pelas almas daqueles que já consideramos salvos. Esquecemos do Purgatório e queremos que todos os nossos mortos estejam, desde já, desde o instante seguinte à morte, no gozo da Bem-Aventurança dos eleitos de Deus.

Ainda assim, eu disse acima que o Pe. Amorth já agora nos ajuda de junto de Deus. Justifico. Em primeiro lugar, o venerável sacerdote chegou a uma avançada idade, e isso significa duas coisas. Primeiro que não foi apanhado de surpresa pela Morte; segundo, que pôde padecer os sofrimentos próprios da velhice em expiação pelas próprias faltas e em preparação para o Dia sem ocaso. Muitas pessoas acham que a melhor morte é aquela que nos chega sem que percebamos; o famoso “ir dormir e acordar morto”. Não vou dizer que este seja uma má morte (até porque a morte ser boa ou má depende essencialmente das disposições interiores em que nos encontramos no instante derradeiro, e não de ela ser mais demorada ou mais lenta, mais consciente ou mais súbita); mas trata-se, parece-me, pelo menos de uma morte arriscada. As pessoas perderam o hábito de pensar na morte e, com isso, a morte repentina, de um mal súbito, ou a morte em um acidente, podem chegar sem que a casa esteja devidamente preparada, sem que as disposições interiores estejam suficientemente lapidadas, sem que a alma esteja pronta, em suma, para se encontrar com Deus e com os pecados de toda uma vida.

A morte na velhice, após uma doença mais ou menos longa, é o contrário. A Inimiga das Gentes vem devagar, vem anunciando a própria presença, vem a passos lentos — e, com isso, dá mais tempo para que nos preparemos. Podemos fazer um demorado exame de consciência; podemos suplicar mais demoradamente o perdão e a misericórdia de Deus. Podemos confessar-nos, receber a Extrema Unção e o Viático; podemos até mesmo oferecer os inconvenientes da doença, os achaques, o medo, as dores — os sofrimentos todos — em expiação pelas nossas faltas. Li que o Pe. Amorth expirou após algumas semanas internado num hospital; quero crer, portanto, que ele tenha sabido aproveitar todas essas oportunidades de apressar a própria entrada no Céu.

Uma segunda razão pela qual imagino que o Pe. Amorth esteja junto de Deus é o ofício ao qual ele dedicou a própria vida. Não foi apenas sacerdote (como se isso fosse pouco), mas sim sacerdote e exorcista. Foi nesta terra inimigo ferrenho de Satanás, lutando corajosamente contra ele exactamente naqueles aspectos em que a presença demoníaca no mundo é mais forte e mais perturbadora: a obsessão, a infestação, a possessão. O mundo moderno vive uma crise de Fé que, se muito esquece de Deus, muito mais esquece do Diabo; esta figura é muitas vezes relegada à superstição medieval, à ignorância de um passado obscuro, a concepções maniqueístas primitivas que não encontram mais lugar em um mundo onde Deus é Amor.

Ora, mas Deus sempre foi Amor; Deus é Amor desde a criação dos Anjos e a Queda de Lúcifer, e uma coisa não tem nada a ver com a outra. Satanás não é um “deus do mal”, mas isso não significa que não seja uma criatura capaz de fazer muito mal. Há entre os homens ladrões e assassinos, sádicos e estupradores, salteadores e bandidos de todos os naipes; a quantidade de mal que o homem tem provocado ao próprio homem é enorme e capaz de assombrar por toda uma vida aqueles que dela tenham ainda que um pálido vislumbre. 

Senão vejamos: se os homens podem causar mal uns aos outros sem que isso seja um óbice à existência de um Deus que é Pai Amoroso, por que um anjo não poderia também provocar o mal aos filhos de Deus sem que isso minimamente maculasse a omnibenevolência do Altíssimo? Não há maniqueísmos dentro da Doutrina Cristã e nunca os houve; não há um deus mau ao lado do Deus que é Bom. No entanto, o mistério da liberdade que permite a existência do mal moral dentro do mundo criado não se restringe apenas aos seres humanos. Também os anjos têm inteligência e vontade, também eles são seres livres, também podem fazer o mal. Satanás não é uma hipótese ingénua e contraditória com a noção de um Deus sumamente bom, pelo menos não mais do que um estuprador ou um serial killer. Na verdade é o contrário: ingenuidade é imaginar que, havendo ladrões e assassinos no mundo, não pudessem existir também seres angélicos voltados à prática do mal.

O Pe. Amorth foi inimigo ferrenho de Satanás nesta terra, e venceu-o por incontáveis vezes, e por isso eu também quero acreditar que Deus o tenha levado depressa para os Céus; pode ser sentimentalismo, mas acho que não convém que aquele que foi inimigo aberto do Demónio no mundo tenha a sua entrada no Céu postergada por causa de algum apego da sua alma aos pecados que nada mais são do que as obras do mesmo Satanás que ele dedicou a vida a combater. 

Mas há ainda uma terceira razão. É que o tempo e a Eternidade relacionam-se de maneira, digamos, curiosa: aqui a História desenrola-se de maneira sequencial mas, lá, é tudo já e(vi)terno.

O Padre Pio certo dia rezava pelo seu avô. “Mas Padre, não disse que ele já estava no Céu?”, um amigo perguntou; “sim, está, mas as orações que eu fiz por ele até hoje e as que eu ainda farei até o fim da minha vida ajudaram-no a chegar lá”. O John McCaffery registrou a história no seu livro de memórias, e compreendê-la ajuda a contemplar melhor o mistério da Comunhão dos Santos. O Céu já está completo enquanto a História se desenrola; e por mais tempo que uma alma justa tenha passado no Purgatório, já agora ela está no Céu, já agora ela pode interceder por nós.

É com este ânimo que olho para o Pe. Amorth e quero já vê-lo em esplendor — o velho guerreiro revestido das suas armas gloriosas, impingindo já a Satanás maiores tormentos do que nos mais formidáveis exorcismos que ele exerceu durante a sua vida…! Que assim seja. Que o bom Deus olhe com misericórdia para o seu pobre servo e lhe dê o descanso eterno, a luz e a paz. E que, do alto dos Céus, o Pe. Gabriele Amorth continue a fazer guerra terrível contra todos os espíritos malignos que andam pelo mundo para perder as almas.

Jorge Ferraz in Deus lo vult


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